Saturday, November 26, 2005

Diario de Campo 22/11/05

São 6:00 da manhã, e o friozinho do sereno me impede de deixar a rede e o saco de dormir que me cobre. Penso num monte de coisas ao mesmo tempo, as tarefas do dia, o nome do meu filho, o décimo sono no qual Marina deve estar imersa lá no México, quantos minutos mais posso dormir sem que me atrase para o meu encontro com Don Raimundo. Obviamente de tanto pensar e calcular minutos de cochilo me levanto às 6:48 num sopetão acrobático e em menos de 10 minutos estou dentro do carro esperando Don Raimundo, o “mateiro” que me ajuda aqui.
Ainda me falta tomar o café da manhã com Doña Chona, uma simpaticíssima senhora que cozinha meu café e almoço diariamente. Umas tortilhas, banana, ovo com pimenta e feijão. Infelizmente não tenho tempo de desfrutar esse café com mais calma. De qualquer forma falo algumas besteiras só pra arrancar umas gargalhadas de Dona Chona, adoro sua risada e quem não gosta de sair pra trabalhar depois de presenciar um bom sorriso. Don Raimundo é um típico mexicano do campo, baixinho barrigudo, de fala rápida mas pouca. É caçador por natureza, anda calado e atento, sobretudo anda só. A impressão que tenho é que qualquer companhia o molesta. Um dia de noite enquanto eu perdia no xadrez pra seu filho de 15 anos ele me diz:”...eu durmo aqui fora da casa muitas vezes.” Mas por que Don Raimundo se você tem uma cama e esposa? E ele me reponde seco: “O caçador é assim mesmo Felipe, está sempre só”. Talvez por isso quando andamos juntos pelo mato, fazendo trilhas, ele sai disparado na frente e quando estamos voltando pela trilha que fizemos, 1 km ou mais, ele vem atrás, bem atrás, só. É arisco mas amável ao mesmo tempo, todos os dias me convida pra jantar e faz questão que eu coma do peixe que ele pescou. Seu maior orgulho são seus filhos dois adolescentes, o menino de 15 anos é bastante bom no xadrez e em matemática e jogamos todas as tardes, quase ninguém no povoado sabe jogar xadrez e ele não me deixa passar um dia sem jogar, na maioria das vezes ele me ganha. Don Raimundo já foi imigrante, cruzou caminhando o deserto do Arizona pra trabalhar de carregador de tacos de golf para os gringos. Ele diz que foi bom, ganhou bom dinheiro “até andei de avião”. Entre ser fudido sem ganhar nada e ser fudido ganhando algo, o ser humano se fode ganhando. Voltou por motivos que ele não gosta de lembrar e eu não quis nem perguntar.
Já é hora do almoço, deixo Don Raimundo em casa pra depois vê-lo mais tarde durante as partidas de xadrez com seu filho. Dona Chona já me espera com a mesa posta no terraço de sua casa de madeira 3 por 6, um único vão. “Pásele muchacho” diz ela já sorrindo quando me vê. Uma boa comida simples e picante, bem mexicana. - Puxe assento Dona Chona e me acompanhe aqui enquanto almoço, isso se a senhora não tem muito que fazer aí claro. Duas horas depois estou saindo com o bucho cheio de comida e a alma cheia de lições de vida. Uma verdadeira terapia onde conto histórias, enquanto ela fala também das suas. Algumas gostosas risadas intercalam um cafezinho e uma lembrança. Sinto que minhas histórias parecem entretê-la muito e como eu adoro falar, pelo menos o faço pra alguém que ainda não as conhece de cor como Marina e os meus amigos mais próximos.
A tarde foi feita pra desfrutar-se, jogar xadrez, tomar banho de cuia com água fria, Don Raimundo não pára em casa a não ser que passe e ouça a resposta que quer ouvir quando nos pergunta quem está ganhando. - Seu filho está com vantagem. Puxa uma cadeira e senta pra assistir ao jogo, como não entende nada, logo se entedia com a lentidão do xadrez e se levanta outra vez. Quando anoitece toma sua espingarda e vai caçar no lado belizenho, cruzando o Rio Hondo que divide México e Belize. Não tem tido sorte ultimamente, mas pelo menos consegue pescar algo todo dia. Não depende da caça pra comer, ganha algo bem com sua lavoura de cana de açúcar e seus bicos, tem até um carro velho.
Assim termina o dia e a única coisa que sei agora é que me arrependo de todos os dias que reclamei da vida por qualquer motivo.

“Viola, furria, amor, dinheiro não.”

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