Sunday, October 02, 2005

Memórias e Saudades do Recife (ou de mim mesmo)

Reza uma dessas sabedorias populares que às vezes temos que perder algo pra valorar.
Eu particularmente gosto dessas certezas universais que vêm do povo, me parecem traduzir algo que é comum pelo menos à maioria da humanidade, e se é comum a tanta gente é porque tem possibilidades estatisticamente significantes de traduzirem algo verdadeiro.
Uma vez resolvi que queria sair do Recife, dizia: essa cidade já deu o que tinha que dar. Estava cansado e entediado de ir ao Cinema da Fundação (“fundação” para os mais cabeçóides), de tomar uma na Cabidela do Baracho na CDU ou no Empório Sertanejo empestado de jornalistas inteligentes. Estudei metade da minha vida no Marista, andava por ali bebendo e comendo no beco da fome ou do vento, conheci todas as fedorentas ruas do centro nessa época. Isso sim eu adorava, conhecer e aprender os nomes das ruas do Recife. Escutava meu pai falando das ruas por onde passávamos no caminho de Santo Amaro até o 13 de maio e achava incrível que ele conhecesse tanto a cidade. Dizia que a Agamenon Magalhães era mangue e eu me maravilhava em imaginar uma avenida tão grande coberta de mangue e lama.
Quando só havia o “Shopping” Recife minha mãe ainda comprava roupas pra a gente lá na Rua das Calçadas e às vezes nos levava pra provar as roupas. O centro me parecia um lugar perigoso, sujo e feio. Morria de medo dos “trombadinhas” e não achava graça em pegar o 423 – Engenho do Meio às 6 da tarde lotado.
Ah, o Engenho do Meio, bairro de cornos segundo a crença popular (outra vez ela). Ali se decompuseram várias unhas perdidas em peladas nos terrenos baldios, se comemoraram várias janelas quebradas por acidente ou não. Esqueletos de lagartixas pendurados nos fios da “minha rua” Washington Luis e inocências perdidas a custa de muitos babaus e lágrimas formam lembranças reincidentes. O mundo fora do Engenho do Meio era ao mesmo tempo hostil e prometedor. Painho nos levava ao Poço da panela, à Casa Amarela, ao Sítio da Trindade. Ali vi meu pai dançando côco pela primeira vez e morri de vergonha apesar de ter me juntado a ele por alguns segundos depois de muita insistência.
Na minha adolescência a exposição de animais era esperada todo o ano de dia era pra ver bicho que sempre gostei e de noite pular o muro só pra dar emoção (o ingresso era muito barato) e assistir Zé Ramalho tocando, tomar duas cervejas porque não podia mais e voltar pra casa andando em bando era o máximo da independência. Mas também saía com meus amigos do Marista, todos revolucionários então, para tomar uma na Boa Vista, na Rua do Bom Jesus, quando essa ainda não era “chic”. Ali, nos afastávamos da “massa cocota” que andava pelo Recife antigo e íamos encher a cara, planejar a revolução comunista e filosofar antes de tomar banho de cueca no (antigo) Marco Zero.
Mas voltando ao assunto, eu queria sair do Recife e minha sorte é que nos últimos 3 anos de Recife, saia com freqüência para temporadas de trabalho de campo em Ibateguara, AL. Enfiava-me no mato por 5 ou 6 dias só pra sentir saudade e voltar ao Empório, à Fundação, ao Baracho... Ir ao centro com algum compromisso, sei lá qual, e passar horas caminhando pelo bairro de Santo Antônio entrar no mercado de São José e sentir cheiro de peixe, ver as lojas de produtos de macumba e pensar: Que louco isso aqui!. Comprava cigarro a retalho, tomava um caldo-de-cana e ficava ali de espectador olhando o movimento dos recifenses, gente banguela, camisas desabotoadas no umbigo, galegos barbudos de olhos verdes com cara de tabacudo. Sempre demorava no centro, voltava caminhando ao terminal do 423 - Engenho do Meio (não sei porque tenho fixação por esse número) que fica na Guararapes (eu gosto de chama-la Gottan Citty) comprava um picolé e ia pra casa contando as funerárias da Caxangá.
Agora moro na maior cidade do mundo a Ciudad de México, e por mais que esteja adorando viver aqui e descobrir coisas muito interessantes que já começam a fazer parte de mim, ainda lembro dos rios, das pontes, da catinga das ruas, do Cabeça de Touro, das conversas com o vigia e sinto saudade. Aqui tem catinga nas ruas, tem mercados e camelôs que vendem discos piratas, tem kombeiros legalizados que andam a 180/h e esculhambam o trânsito, têm feira na minha rua 3 vezes por semana com gente louca gritando “verdura de a peso”. Tem poetas nas ruas recitando e pedindo uma “intera” pra qualquer coisa, têm bairro pobre e bairro rico, tem gente feia, banguela e com camisa desabotoada no umbigo, tem até galego barbudo com cara de tabacudo. Se os mexicanos se esforçam transformam essa megalópole em um Recifão, com mundão e tudo o estádio Azteca. Mas falta a memória de pertencer e isso só tenho no Recife. Isso faz do México algo para descobrir, desfrutar, padecer e ir. Ir ao recife e contar tudo aos meus amigos revolucionários numa cachaça no Baracho. Agora que momentaneamente o perdi, dou mais valor ao Recife.

4 comments:

Anonymous said...

E os que aqui estão dão valor à Cidade do México porque não estão ai. Entao vamos brincar de aproveitar nossas realidades, que esse caralho de revolução num vai dar pra sair agora não.

Anonymous said...

E os que aqui estão dão valor à Cidade do México porque não estão ai. Entao vamos brincar de aproveitar nossas realidades, que esse caralho de revolução num vai dar pra sair agora não.

Anonymous said...

teus passeios pela "a Cidade" eram muito similares aos meus. Ei, tu se lembra qual era a rua da Slopper(Cilôper),tinha umas fotos antigas do Recife, um dia desses tava na cidade e me veio esta duvida e nao consegui lembrar (eu morava no sertao, ia pouco pro Centro)....

Anonymous said...

Saudades do Recife em crônica...
Às vezes nos encontramos no vazio da profundeza das saudades, daí, não conseguirmos emitir uma sequer letra para que possamos expressar palavras e frases consecutivas que venham expor a dor das lembranças, recordações e paixões por Recife e por Pernambuco como um todo.
À Avenida Caxangá reserva-se a parte da trajetória do início da urbanização do Recife zona oeste, ante seus antigos engenhos que ali cortavam sua passagem histórica e grande parte da nossa infância registrada ao longo dos seus treze kilometros de extensão.
Bairro da Várzea com sua veia apaixonante que é o rio Capibaribe associado à mata atlântica de Brenand que, adentrando-a, logo encontramos restos de cachoeira, tão visitada quando na nossa infância durante as aventuras da idade...
No bairro do Cordeiro, encontramos sua tradicional feira com o antigo hospital Getúlio Vargas, mais adiante a famosa Rua da Lama que prolongada rumo ao Engenho do Meio, passamos próximo ao Cruzeiro que fica na curva da Avenida do Forte, colada ao bairro dos Torrões, cujas recordações constantes vêm o período do início da década de 80 e nossas transformações biopsicossociais ali estiveram presentes...
E o Recife mesmo, lá no centro, não tem outra paisagem igual, por mais que se assemelhe, mas não a encontramos, sobretudo com as energias exaladas pelos prédios antigos que também esboçam a história do povo pernambucano, desde a época da condição de capitania hereditária e aos marcantes movimentos revolucionários, que digam a Rua da Praia, o Palácio do Campo das Princesas e o Forte das Cinco Pontas com o martírio do imortalizado Frei Caneca.
Ouvir a seus cantores, é não dar oportunidade ao coração para aceitar a separação, a distância e o aperto pelas saudades, ao tempo que nos impõem um choro na alma como forma de evitar uma partida inesperada, mediante as dores internas sofridas, face as atormentadas lembranças.E não sejamos injustos ao nominar artistas, já que todos,sem exceção, simbolizam as raízes de Pernambuco mediante suas respectivas manifestações culturais.
Caminhar sobre as pontes, olhar os casarões do lado esquerdo visto da Guararapes, é saber que ali estão registrados nossos ancestrais e termos a consciência de dizê-los que nutrimos o amor pelo Recife na mesma magnitude de seus imortais poetas, cancioneiros, artistas e do seu misturado habitante, tão ímpar como a origem de sua ocupação, mesmo que tenham sido encontradas variedades de tribos, mas todas em comum naquilo que é típico do pernambuquês: as características interna e externa de nossa existência Regional.
Certa vez ouvir um comentário que não temos a capacidade de parar o tempo, ocasião em que disseram que "só a saudade que congela o tempo", pois o "tempo não pára", mas pelas lembranças, conseguimos pará-lo, justamente pela força incomensurável das saudades. Daí, a vontade de chorar e logo vem a vontade de recitar: "Sou do Recife com orgulho e com saudade, sou do Recife com vontade de chorar...o rio passa levando a barcaça pro alto do mar e em mim não passa essa vontade de voltar..."
Que Deus abençoe seus governantes fazendo-os investir eternamente na memória do nosso povo, o amor à causa histórica que nos faz peculiar, embora nosso Brasil seja uma única maravilhosa nação...

Sebastião Uchoa
São Luís/Maranhão
uchoa39@yahoo.com.br